Os complexos familiares na formação do indivíduo – Lacan

Resenha do texto “Os complexos familiares na formação do indivíduo“.

Lacan escreve esse texto em 1938 para uma Enciclopédia traçada pelo psicólogo Henri Wallon. Ela era dividida em três capítulos: A família, A escola e A profissão. Coube a Lacan o capítulo dedicado à família.

Neste momento Lacan está iniciando sua entrada na psicanálise, porém, já aqui encontramos posições que irão ser desenvolvidas em seu ensino tais como: a transmissão pela via da linguagem, o declínio do Nome-do-Pai, e a prevalência da pulsão sobre o instinto.

Pode-se dizer que o ponto principal deste texto é o questionamento de Lacan a respeito do funcionamento e da transmissão da família. De antemão ele define a família como da ordem da cultura sem nenhuma fundamentação biológica:

[…] a família humana é uma instituição. A análise psicológica deve adaptar-se a essa estrutura complexa e nada tem a fazer com tentativas filosóficas que tenham por objetivo reduzir a família humana seja a um fato biológico, seja a um elemento teórico da sociedade. (Lacan, 2003, p.30)

Outro ponto de grande importância é que para Lacan o atual (em 1938) grupo reduzido da família era uma contração complexa da instituição familiar. Porém esta contração nada tem de natural.

Tal estudo torna-se importante por afirmar ser impossível compreender o homem fora da cultura.

Introdução

Lacan enfatiza que tanto o animal quanto o homem têm família e que mesmo entre os animais há um elemento social que não é estritamente natural, porém, entre os homens o social toma a forma de cultura. (Miller, 1984)

A espécie humana tem um desenvolvimento singular das relações sociais, que ocorreria devido à capacidade de comunicação mental. Neste momento falta ainda a Lacan o conceito de significante.

A cultura introduz a família como a dimensão específica na realidade social e na vida psíquica. “[…] As instâncias culturais dominam as naturais, ao ponto de não se poderem considerar paradoxais os casos em que umas substituem as outras, como na adoção” (Lacan, 2002, p.12).

Ele defende, ainda, que os métodos da psicologia concreta (observação e análise) não são capazes de acessar inteiramente a estrutura cultural da família. A família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, ela transmite estruturas do comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência. (Lacan, 2003)

A questão é: como é possível essa transmissão? É importante lembrar que Lacan ainda não faz uso da linguística de Jakobson e Sausaurre, assim, para pensar em como ocorre à transmissão de algo na ordem familiar, ele faz uso do termo complexo.

1 – O complexo, fator concreto da psicologia familiar.

A família deve ser compreendida pelas relações sociais. O complexo é definido essencialmente como um fator de cultura, oposto do instinto: “[…] no que concerne à definição do homem, nada se pode definir de seu psiquismo a partir da adaptação vital” (Miller, 1984, p.4).

Desse modo, o complexo se revela como uma causa de efeitos psíquicos não dirigidos pela consciência, como por exemplo, atos falhos, sonhos, sintomas. Eles também desempenham um papel de “organizadores” no desenvolvimento psíquico.

De acordo com Miller (1984) só é possível se orientar nessa noção de complexo a partir do conceito de estrutura, que ainda falta a Lacan nessa época.

[…] Lacan o chama uma representação, embora esse complexo tenha, de fato, dois traços; fixação e repetição. Fixação de uma etapa do desenvolvimento psíquico e repetição promovida por esse complexo (Miller, 1984, p.7).

Lacan faz uma sequência de três complexos que ocorrem ao longo do desenvolvimento do sujeito: desmame, intrusão e o Édipo.

1.1 Complexo do desmame

“[…] Ele fixa no psiquismo a relação da alimentação, sob o modo parasitário que a necessidade dos primeiros meses de vida do homem exige; […] funda os sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o indivíduo a família” (Lacan, 2002, p.22).

A regulação representada pelo desmame não é uma regulação natural, mas cultural. O caráter essencial do instinto é sua regulação fisiológica que para de agir no animal quando o fim da amamentação se completa. Já no homem trata-se de uma regulação cultural que dirá até quando a criança deve ser amamentada. Isto porque, o atraso da dentição e da marcha determina na criança uma impotência vital total que perdura mais do que os dois primeiros anos de vida. Muito precocemente a criança adquire um conhecimento da presença que a função materna preenche e o papel do traumatismo do desmame pode desempenhar uma substituição dessa presença.

[…] De fato, o desmame, por qualquer das contingencias operatórias que comporta, é frequentemente um traumatismo psíquico cujos efeitos individuais, anorexias ditas mentais, toxicomanias pela boca, neuroses gástricas, revelam suas causas à psicanálise (Lacan, 2002, p. 23).

No aleitamento a mãe ao mesmo tempo recebe e satisfaz o mais primitivo de todos os desejos, com isso a mãe preserva a criança do abandono que seria fatal para a criança, mas precisa ainda permitir essa ruptura para que a imagem da mãe possa ser sublimada e para que novas relações se introduzam com o grupo social. Caso contrário, a pulsão de morte tenderia a se sobressair, e apareceria sobre a forma de suicídios “não – violentos”, em que aparece a forma oral do complexo (greve de fome, envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, etc.) A análise desses casos demonstra que em seu abandono à morte, o sujeito procura reencontrar a imagem da mãe. O que conta, portanto, para Lacan não é tanto o fato do desmame, mas a maneira como ele será vivido pelo sujeito e a significação que este lhe dará.

Pela intenção mental o sujeito pode aceitar ou recusar o desmame, traço que marcará a sequência de seu desenvolvimento.

1.2 Complexo da intrusão

Acontece quando o sujeito se reconhece tendo irmãos. As condições serão muito variáveis de acordo com a cultura, e depende ainda da ordem do seu nascimento.

Precocemente, a criança, esboça o reconhecimento de um rival, de um “outro” como objeto. Lacan retoma aqui o Estádio do Espelho, nele o objeto-imago é seu semelhante. O eu se constitui ao mesmo tempo em que o outro no drama do ciúme. As demonstrações do ciúme infantil esclarecem seu papel na gênese da sociabilidade e do próprio conhecimento.

Há nesse estágio uma identificação que tem um valor imaginário. O sujeito, comprometido no ciúme por identificação irá reencontrar o objeto materno, agarrando a recusa do real e à destruição do outro, ou ainda, será levado a algum outro objeto e recebe o intruso sob a forma característica do conhecimento humano.

O papel traumatizante do irmão é constituído por sua intrusão. Só após o complexo de Édipo o intruso é adotado no plano das identificações parentais e se torna uma pessoa digna de amor ou ódio para o sujeito. Além disso, a imagem do irmão não desmamado atrai uma agressão especial porque repete no sujeito a imago da situação materna e, com ela, o desejo de morte.

1.3 Complexo de Édipo

A base deste complexo são as pulsões genitais que se iniciam aos quatro anos e se dirigem ao objeto mais próximo, normalmente o progenitor do sexo oposto. As frustrações são referidas ao progenitor de mesmo sexo e é ainda acompanhada de uma repressão educativa. A tensão se resolve por um lado pelo recalcamento da tendência sexual que permanecerá latente até a puberdade e por outro lado pela sublimação da imagem parental. O desejo edipiano aparece mais intenso no menino para com a mãe, e a pressão se exerce do pai para com o filho. Aí se encontra o complexo de castração:

[…] o desejo genital não é a angústia. A angústia vem depois. O desejo genital reatualiza a mãe como objeto fundamental do desejo, o objeto como tal, e, em compensação, um outro processo diferente da eleição do objeto é posto em cena, a saber, a identificação com o que obstaculiza a realização desse desejo, ou seja, o pai” (Miller,1984, p.14).

É possível notar em vários mitos que o advento da autoridade paterna corresponde a um temperamento da primitiva repressão social. As formas de neuroses dominantes no final do último século revelam que elas estavam dependentes das condições da família.

2 – Os complexos Familiares em Patologia

2.1 As psicoses de tema familiar

Lacan reconhece na psicose a reconstituição de estádios do eu anteriores à personalidade:

[…] se, com efeito, caracterizarmos cada um desses estádios pelo estádio do objeto que lhe é correlativo, toda a gênese normal do objeto na relação especular do sujeito com o outro, ou como pertinência subjetiva do corpo despedaçado, se reencontra numa série de formas de estagnação, nos objetos do delírio (Lacan, 2002, p. 67).
Essa ereção do objeto se produz à luz do espanto e os objetos são transformados por uma estranheza inefável se revelando como choques, enigmas, significações.

Os complexos familiares desempenham um importante papel no eu nesses diversos estádios que a psicose se detém, seja motivando as reações nos sujeitos, ou como tema de seu delírio. Lacan questiona se os complexos que desempenham a motivação e os temas nos sintomas da psicose também tem um papel de causa em seu determinismo. Ex. Estudo sobre as irmãs Papin.

2.2 As neuroses familiares

É a partir de uma identificação ambivalente com seu semelhante (rivalidade/acordo com o igual) que o eu se diferencia num progresso comum do outro e do objeto:

“[…] A realidade que esse jogo dialético inaugura guardará a deformação estrutural do drama existencial que a condiciona e que se pode chamar o drama do indivíduo” (Lacan, 2002, p.78).

Um segundo nó no drama existencial ocorre durante o complexo de Édipo que pode aparecer sob a forma de fobias (na criança tem por objeto o animal, que pode representar a mãe como gestante, o pai como ameaçador, o irmão mais novo como intruso, etc.); neuroses de transferência (histeria, neurose obsessiva – que são incidências ocasionais do complexo de Édipo no progresso narcísico).

A neurose, para Lacan, aparece também como uma luta específica contra a angústia. “[…] o retorno do recalcado corresponde ao esforço constitutivo do eu para se unificar. O sintoma exprime simultaneamente essa falta e esse esforço, ou antes, sua composição na necessidade primordial de fugir da angústia” (Lacan, 2002, p.81) Lacan finaliza o seu texto dizendo:

Acreditamos que o destino psicológico da criança depende antes de mais nada da relação que as imagens parentais mostram ter entre si. É por aí que o desentendimento dos pais é sempre prejudicial à criança, e que, se nenhuma lembrança permanece mais sensível em sua memória que a confissão formulada do caráter desarmonioso de sua união, as formas mais secretas desse desentendimento não são menos perniciosas. (Lacan, 2002, p.89).

Dessa forma, ele demonstra como a estrutura familiar irá desencadear sintomas singulares em cada sujeito, o que não significa que Lacan se empenhe numa busca por uma estrutura ideal da família. Trata-se antes de desmistificar a concepção de uma família biologicamente fundada e ainda as consequências para o homem das mudanças desta. Aqui já encontramos a tese lacaniana do declínio do Nome-do-Pai, que aparece como o termo de imago, e o questionamento das consequências disso para o homem moderno:

[…] um grande número de efeitos psicológicos parece-nos decorrer de um declino social da imago paterna. Um declínio condicionado por se voltarem contra o indivíduo alguns efeitos extremos do progresso social; um declínio que se marca, sobretudo, em nossos dias, nas coletividades mais desgastadas por esses efeitos: a concentração econômica, as catástrofes políticas. […] Esse é um declínio mais intimamente ligado à dialética da família conjugal, uma vez que se dá pelo relativo crescimento, muito sensível na vida norte-americana, por exemplo, das exigências matrimoniais. (Lacan, 2003, p.67).

Referências bibliográficas
Lacan, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
Lacan, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Miller, Jacques-Alain. Leitura crítica dos “Complexos Familiares”, de Jacques Lacan.

Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/

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